"Quem sou eu para julgar?": poucos slogans são mais agradáveis para as pessoas comuns como este, que é uma expressão do rosto tranquilizadora da autoridade, que é revigorada pelo populismo, pelo cerchiobottismo[1], pela retórica pauperista e da misericórdia. "Quem sou eu para julgar?", pergunta o Papa. "Você é um ser humano dotado de razão prática", Kant responderia. Mas é aqui o cerne da questão: a idéia de que ninguém menos do que o Papa - dos homens - não deve julgar é um ataque contra a faculdade humana de julgamento moral. De julgamento moral autônomo, no sentido kantiano. "Quem sou eu para julgar?", dito pelo Papa, faz o seu caminho para o "quem é você para julgar?", dito para o cidadão comum, que por sua vez abre o campo para a aceitação de uma moral heterônoma, comunitária. "Quem sou eu para julgar?" é muito diferente de "quem é a igreja / comunidade para julgar?".
Mas há mais. O "quem sou eu para julgar?" assume que, se a sentença foi proferida, seria negativa. Deixe-me explicar com um exemplo. Eu sou uma mulher solta, que dá sem problemas na primeira ocasião que acontece. Quem me diz "eu não te julgo" toma como certo que, se o julgamento fosse dado, não seria positivo. Idem quem me diz "todo mundo faz o que quer". Mas o fato da questão é que eu não sou absolutamente uma libertária que reivindica o direito de fazer o que quer, se lícito, independentemente de se é moralmente certo ou errado (a famosa distinção entre pecado e crime). Não! Eu reivindico o nível de julgamento moral. É aí que nós jogamos o jogo. Quem me diz "eu não te julgo" derruba tal plano, e derrubando-o deixa, com ele, a forma como as coisas estão.
Eu não sou uma estrela pornô que diz "eu sou assim, mas cada garota faça o que ela quer". Não! Eu espero entrar no discurso sobre o que é certo ou errado, sobre o que é bom ou ruim, sobre o que deve ser feito ou não deve ser feito. Eu afirmo que ser puta é certo, mas acima de tudo eu afirmo que não ser é errado. Errado no sentido de moralmente repreensível, mau. Mau, porque logicamente errado. Como vocês podem ver, meu estrito cognitivismo ético não é absolutamente nem alinhado nem alinhável com as posições de MicroMega e de Paolo Flores d'Arcais, que eu acredito que abre o campo para uma concepção estilo Londonistão da moral (consequente tendência da ideia de que os juízos morais têm falta de um fundamento cognitivo-verdade).
A posição do Papa Francisco, no entanto, é muito mais sutil e perniciosa, porque não é absolutamente um não acreditar em uma ética objetiva, longe disso: é um derrubar a comparação lógico-teórica sobre os valores, em virtude de um "quem sou eu para julgar?" que desloca a questão para outro plano, aquele humano-existencial (que é habitado por outras categorias, tais como a misericórdia e a compaixão), tendo como certo que o discurso lógico-teórico sobre valores éticos é algo que está sempre e somente sob a jurisdição da igreja / comunidade. O que é tudo isso além de demagogia trivial, vulgaríssima, jesuíta?
Valentina Nappi
(19 de novembro de 2014)
[1] "Malabarismo oportunista entre posições opostas, especialmente na política, tentando não contrariar ninguém" (http://dizionari.repubblica.it/Italiano/C/cerchiobottismo.php) - Nota da Tradutora
Original: Micromega, http://blog-micromega.blogautore.espresso.repubblica.it/2014/11/19/valentina-nappi-ne-con-il-papa-ne-col-direttore
Tradução: Abigail Pereira Aranha
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