Pesquisar este blog

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Os problemas da discussão sobre o aborto que os pró-vida não perceberam

Abigail Pereira Aranha

A primeira coisa que precisamos ter em mente para entender a questão do aborto é que há décadas as discussões em países como o Brasil (sobre praticamente qualquer assunto) não são entre pessoas de raciocínio normal em ambos os lados, onde a ideia vencedora é a que tem os melhores argumentos. A segunda coisa é que a discussão sobre um assunto é diferente da discussão sobre a discussão sobre o assunto. E esta é a questão a que eu chamo a atenção aqui.

Os argumentos a favor do direito de abortar são horríveis. Talvez fossem aceitáveis antes da popularização dos preservativos, dos anticoncepcionais e dos anticoncepcionais de emergência. Não é que hoje a mulher só engravida ou pega DST porque ela quer ou é muito relapsa. Mas a mulher que quer evitar tem mais condições hoje que em qualquer época da História. E me refiro a mulheres pobres. Vamos aos argumentos horríveis. A mulher não faz aborto porque gosta de sexo (com homem) e, numa ou noutra aventura, engravida. Uma boa prostituta de uns 10 anos pra cá não faz sexo sem camisinha. Eu já transei com 297 homens desde os 14 anos, nunca engravidei nem peguei doença. Eu sou a única de 8 irmãos que não tem filho, lá em casa já pensaram se eu sou estéril. Uma mulher estuprada não precisa de mais de três meses de gravidez pra abortar. Se ela odeia estar grávida, vai tentar fazer o aborto com um mês ou dois no máximo, vai evitar a gravidez se puder, com anticoncepcional de emergência, por exemplo. Por sinal, quantas vezes a mulher é estuprada de noite e vai à polícia na manhã seguinte?

Que outro argumento a favor do aborto a gente pode pensar? Uma coisa você deve ter observado: isso não é uma conversa comum do povo de verdade. Está certo, as mulheres que fazem aborto são mulheres do povo de verdade. Mas as mulheres que discutem o aborto (para defender pelo menos o recurso para a mulher que precise) são ativistas feministas de esquerda (não todas as feministas de esquerda). E os homens que defendem o "aborto legal" são os capachos dessas lesbofeministas de esquerda. Esses feministas (homens e mulheres) defendem o aborto em nome de uma mulher que não é a mulher típica, enquanto ignoram a mulher típica, que é contra o aborto. Mas isso não acaba com o debate.

Mas os conservadores não estão muito melhores que a militância esquerdista, apesar de terem a posição mais certa (ser contra) e terem os melhores argumentos. Eles se acostumaram a defender seu ponto de vista em textos, vídeos e memes compartilhados entre eles mesmos. O Conservadorismo, por sinal, nunca foi defender a fé, sempre foi vocalizar a fé e ouvir quem tem a fé; dizer "eu creio", ouvir e ler quem diz "eu creio" e compartilhar o que quem diz "eu creio" diz. Portanto, não temos um debate, nós temos duas tribos inimigas que ambas desprezam a própria ideia de uma ouvir ou ler o que a outra tem a dizer.

Mas o movimento socialista é um movimento sociopolítico, e o Socialismo é um sistema sociopolítico. Portanto, sempre que a esquerda está em um dos lados de uma polêmica, ainda mais quando é ela mesma quem a provocou, o objetivo é uma mudança cultural e sociopolítica. Isso explica por que o debate sobre o aborto, se podemos chamar isso de debate, continua mesmo quando a maior parte do povo de verdade é contra o aborto. O povo pode não ser o que o movimento diz que ele é, mas pode ser mudado, culturalmente, para alguma coisa que o movimento pretende (que também pode não ser o que o movimento diz que ele é). Pelo menos, a estratégia é essa.

Então, o problema do ativismo do aborto não é se o aborto vai ser liberado irrestritamente, ou em mais casos do que a lei atual prevê. O problema é o que ele pode conseguir baseado no que JÁ conseguiu. Uma conquista do movimento abortista, do movimento feminista e do movimento esquerdista é que o valor da vida já foi posto em discussão. Já é bonito e inteligente provar que a vida humana não começa na fecundação. Também é erudito provar que o feto só é gente depois de x semanas de gravidez, antes disso a mãe pode "tirar". Antigamente, alguns pastores faziam um desafio aos "pró-escolha": esperem a criança nascer e deem uma paulada na cabeça dela (porque dentro da barriga da mãe, vocês têm coragem). Pois eles aceitaram: já existe, pelo menos como ideia publicada, o aborto pós-nascimento. Perceberam o progresso? Os conservadores que dizem "aborto é assassinato" podem estar falando como estúpidos: assassinato é matar um ser humano, e se um feto ou um recém-nascido é um ser humano é exatamente o que o outro lado colocou em discussão. Discutir o aborto é discutir a humanidade da pessoa humana. E não digo só do feto ou do recém-nascido. A questão é de divisão de humanos e não-humanos e, entre os humanos, os mais humanos que os outros. Um dos argumentos a favor do aborto legal, no Brasil, é a mortalidade de mães em abortos clandestinos. Essa preocupação é das mesmas pessoas que pedem o "fim da violência contra a mulher", em que os "feminicídios" nunca passam de 10% do total de homicídios e a própria metodologia mais a própria negligência da polícia fazem a violência de mulher contra homem ser omitida, quando não é computada no sentido inverso. Então, mulheres são seres humanos enquanto homens e bebês são sub-humanos, ou são os homens e bebês os seres humanos enquanto mulheres são alguma coisa supra-humana.

"Até os chacais abaixam o peito, dão de mamar aos seus filhos; mas a filha do meu povo tornou-se cruel como os avestruzes no deserto" (Lamentações 4: 3). Parece profecia sobre muitas mães do Brasil de hoje. Mas muitos rapazes que me conhecem me disseram que imaginam que eu vou ser u'a mãe muito fofinha. Mas os que conhecem o meu corpo me disseram pra tomar cuidado quando amamentar em público, porque o meu peito é grande e alguém pode não ver o bebê e chamar a polícia pra mim por atentado ao pudor. Isso foi só pra colocar uma coisa mais leve.

Se é verdade que a maioria das mulheres que tiveram filhos por estupro se recusaram a abortar e elas amam seus filhos, como alguns grupos pró-vida já mostraram, e uma reportagem de noticiário mostra uma mulher vítima de estupro que fez ou tentou fazer um aborto como se ela representasse a regra geral, esse noticiário está, de alguma forma, desconhecendo o universo feminino do povo de verdade, mesmo que entreviste mulheres que usam um nome de "feminismo". Esse é um outro problema, que é conhecido como "levantar o debate": transformar a comunicação de massa e os centros técnico-científicos em megafone de algum grupo ativista inexpressivo em um povo que diz representar. E dentro da empresa de comunicação de massa, isso é consequência de uma postura empresarial de tratar o povo de verdade com, no mínimo, desinteresse, por um compromisso com um movimento sociopolítico que pretende transformar este povo de verdade. E se isso não leva essa empresa à falência, o ramo de negócio como um todo já está contaminado, mesmo que, oficialmente, o país não tenha deixado de ser capitalista. Para tanto, a culpa não é do movimento abortista, mas de quem está dando suporte a ele.

Um político ou empresário defensor do aborto não representa sequer as mulheres que já fizeram aborto, já que nem elas tiveram motivo ideológico para fazê-lo nem elas têm interesse em um movimento popular abortista. Para uma mulher do povo de verdade, é quase impensável fazer um aborto, e para a mulher que já fez um, é quase impensável fazer o segundo. Digo isso na questão da saúde. A gravidez já precisa de alguns cuidados. A mulher pode fazer o aborto no Sistema Único de Saúde e sair do hospital dizendo "graças a Deus", mas tirar um feto tem seus efeitos no corpo. Essa mulher, a gente pode até perdoar. Mas tratar um abortista com boicote de espaço e de dinheiro, quando é aplicável, não é "fundamentalismo", é reagir como povo de verdade que valoriza a vida humana. E não é o caso de um debate qualificado. Quem está do outro lado pode pensar, literalmente, que você não tem o mesmo direito de existir que ele.

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigada pela visita. Eu passei pelo seu blogue e vi o seu texto "Coronavírus com Stephen King" e a sua resenha do livro que baseou o filme "A dança da morte". Eu vi o filme. E no fim das contas, a vida não imitou a arte.

      Excluir

Abigail Pereira Aranha no VK: vk.com/abigail.pereira.aranha
E-mail: saindodalinha2@gmail.com

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

AddThis