1) Poder de descrição
O poder de descrição é o contrário do poder de síntese. O poder de síntese precisa, primeiro, de um plano de fundo de conhecimentos em comum entre o emissor e o destinatário da mensagem; segundo, de um domínio da linguagem de ambos os lados, do emissor para expressar a mensagem e do destinatário para entendê-la. Quando o desnível de conhecimentos do emissor acima do destinatário é grande, o emissor precisa formar o objeto da mensagem nos conhecimentos do destinatário.
Qualquer estudante universitário ou profissional com curso técnico deveria saber disso. Uma disciplina de um curso universitário pode gastar um semestre para fixar um conceito ou um termo técnico descritivo, depois de apresentar e fixar outros conceitos e termos técnicos descritivos. Conforme o curso, esses conceitos são mostrados em aulas de laboratório ou em visitas técnicas; assim, as palavras são ligadas a objetos do mundo físico. Se você faz um curso interessado em formação, não no diploma, você até percebe que o curso é um engodo quando você termina com poucos conhecimentos e poucas palavras a mais do que começou.
Para a descrição de um objeto que é novo para o destinatário ser viável, o emissor e o destinatário precisam de um vocabulário básico em comum. Mas o que eu chamo de vocabulário básico em comum não é só um conjunto de signos, é a associação de um certo objeto externo a cada um dos signos.
Um sinal de que uma pessoa é semianalfabeta preguiçosa e fanfarrona é quando essa pessoa procura resumo quando devia procurar descrição. Um outro sinal é essa pessoa conhecer pouco de uma área do conhecimento, ouvir uma pessoa entendedora dessa área e dizer que tudo que pensava antes foi confirmado por essa pessoa entendedora. Um especialista tem dificuldade pra falar 10 minutos sobre sua própria especialidade sem que uma pessoa típica do povo ouça um termo que não conhece ou um dado que não tinha. A explicação de um único termo para um público popular pode precisar de 5 ou 10 minutos de fala ou de 5 parágrafos de texto. Portanto, se qualquer semianalfabeto farsante pode ouvir uma certa pessoa especialista falar uma ou duas horas e dizer que essa pessoa é "a voz da ciência" (ops, sem referência pessoal![1]), isso significa que essa é um "spin doctor" produzido exatamente pra isso.
Para uma pessoa com integridade mental, o mundo real externo é a referência do mundo emocional-subjetivo e do mundo verbal, o mundo real externo é a referência do que essa pessoa pensa, faz, sente e fala. E não vice-versa. É possível até que essa pessoa com integridade mental precise criar um termo novo para descrever um objeto, porque não existia um termo melhor no vocabulário antes. Mas mesmo dentro do vocabulário popular (não vamos confundir com fala chula ou vocabulário da população inculta), a pessoa mentalmente normal que usa o poder de descrição vai de um objeto extralinguístico para a linguagem oral ou escrita (ou uma outra forma de expressão, como artes gráficas). Isso em vez de partir da fala do interlocutor, das palavras do texto ou da própria fala para entrar no próprio mundo emocional-subjetivo ou em reflexos condicionados pré-fabricados; e essa pode ser a estrutura mental do interlocutor daquela pessoa mentalmente integra.
2) Humor, erotismo e poder de descrição
Você já me viu pela internet, ou pode me ver depois se está me conhecendo agora, fazendo alguma tentativa de piada com as minhas curvas exageradas e as minhas aventuras sexuais com vários homens no meio de um texto sobre algum assunto sério. Às vezes, pra dar uma quebra relaxante em um texto longo ou pesado, mas sem sair muito do assunto principal. Às vezes, a questão da sexualidade ou a questão do contato interpessoal entre homens e mulheres tem relação com o assunto. Mas sempre eu aproveito que eu sou mulher e tento oferecer um diferencial no que eu escrevo (vou ficar devendo o celular pra encontros sexuais). Porque desde a minha adolescência (ou, no português de Portugal, desde quando eu era puta), eu nunca achei certo que justamente quando se aproxima uma garota sexualmente interessante, a roda de homens tem que se refrear pra não falar algo relacionado a sexo. Eu chego na roda com um vestido apertado (numa suposição, porque eu não uso vestido apertado), a turma imagina a ferramenta no meio dos meus seios e acha que ela não é o bastante pra atravessar a minha bunda. Como é que eles vão ficar enquanto nós conversamos sobre política ou futebol? Eles vão ficar com medo de dizer que eu tenho peito pra dizer certas coisas? Mas por que eu toco nesse assunto aqui? Porque nessa questão do poder de descrição, se eu estou abordando um assunto, é uma garota com boa aprovação do público masculino quem está escrevendo. Então, em primeiro lugar, eu também estou descrevendo um outro objeto ao lado do objeto principal, que é a série de problemas e alegrias na relação dos homens com as mulheres nos lugares do nosso dia-a-dia (com e sem duplo sentido). E em segundo lugar, eu lembro que quem exercita o poder de descrição não desaparece enquanto isso. O observador neutro é mais que uma ficção, pode ser uma trapaça. Ou: o observador neutro pode estar escondendo parcialidade em vez mostrar imparcialidade. E mais: uma mulher que tenta se mostrar com neutralidade de gênero sempre vai ocultar a pessoalidade, em vez de mostrar impessoalidade.
Por tudo isso, eu não vejo valor especial em obras humorísticas que apresentam mulheres sexys ou nudez feminina; nem no chamado nu artístico; nem nas cenas de nudez feminina ou sexo nas obras impressas ou audiovisuais das artes convencionais. Nessas obras, a nudez feminina ou o sexo são sempre partes irrelevantes em relação ao enredo ou ao tema proposto. Se essas partes forem tiradas, será perdida, quando muito, uma visão precária de algum corpo feminino quando não havia nem pornografia acessível nem um nível razoável de liberdade sexual, mais algum chamariz para a obra em si.
Mas as obras de humor, como é sabido, já foram notáveis na Antiguidade como aplicação do poder de descrição para críticas político-sociais (inclusive à Igreja Católica Apostólica Romana). Hoje, nós temos formatos mais suaves, como a comédia de situação, que não deixam de ter em si bons conteúdos descritivos e de reflexão. Mas além de nós vermos algumas peças de humor com apelação sexual, como abordei há pouco, e outras peças de humor sem graça por outros motivos, nós vemos também um humor que ataca o que está certo ou ataca um erro em nome de outro erro. É o que ilustrou o Joaquin Teixeira, na sua conta do Twitter que foi apagada pela própria plataforma, usando o caso então recente da tentativa de assassinato do então candidato a presidente Jair Bolsonaro: "23:59: Sua piada mata. 00:00: A faca passa bem".
3) Os erros dos quadros da Santa Ceia
Os quadros da Santa Ceia já foram vistos por muitas pessoas com uma certa reverência (por outras muitas, ainda são). Pra mim, são quadros irritantes. Daqui a pouco, vou explicar por que. Hoje em dia, é mais visível quando um livro inteiro, um artigo de jornal, um artigo acadêmico ou um cartoon se diz descrever um recorte da realidade mas é apenas uma expressão escrita ou desenhada dos clichês do grupo a que o autor se associa, das burrices correntes na população de onde o autor está ou dos preconceitos pessoais do autor. No passado, inclusive no passado recente no interior do Brasil, apenas perceber os erros grosseiros ou a manipulação de uma corrente que tinha o domínio político-cultural (em qualquer lugar) era muito difícil. Os quadros da Santa Ceia de antes do século XX são exemplos disso.
Temos, por exemplo, o quadro de Leonardo da Vinci de 1495[2], o de Giampietrino de 1520[3], o de Juan de Juanes de 1562[4] e o de Giacomo Raffaelli de 1818[5]. A mesa está errada: a mesa dos israelitas era baixa em forma de "U" quadrado. Quem comia à mesa se deitava no chão, se apoiando nos cotovelos. Talvez Jesus estivesse na parte de dentro do "U". Ah, enquanto eu pesquisava uma imagem pra colocar aqui, descobri uma versão em que a mesa é redonda, a de Francesco da Santacroce, de 1519[6]. O pão está errado: o pão que os israelitas comiam era como massa de pizza, não lembrava rosca de padaria, como os pães nos quadros. Muito menos era uma hóstia, como na versão de Juan de Juanes. E ainda temos o tipo físico dos 13, que é um tipo europeu, não um tipo do Oriente Médio. Se lembra de que o apóstolo Paulo foi confundido com um egípcio? (At 21: 38)
Assim, sem entrar na questão da existência dos personagens retratados, os pintores confundiram Judeia e Samaria do século I com as próprias vizinhanças católicas das suas próprias épocas. E nisso, eu não digo que cada pintor tinha o seu provincianismo próprio, mas que todos eles retrataram (literalmente) uma visão limitada do mundo que ganhou países inteiros. Isso apesar de a própria visão das obras originais ter sido uma oportunidade de poucos privilegiados (vamos nos lembrar de que há cerca de 100 anos, apenas morar em uma área urbana já era ser parte de uma minoria mesmo em países desenvolvidos). Ninguém discute que esses quadros sejam obras de expressão da fé cristã. O problema é se eles passam disso e são representações de pessoas e fatos reais. E para muitos cristãos, essa questão nem existe.
NOTAS E REFERÊNCIAS:
[1] "Roda Viva | Atila Iamarino | 30/03/2020", https://www.youtube.com/watch?v=s00BzYazxvU. Eu vi os comentários do vídeo poucos dias depois e vários tinham essa expressão "voz da ciência" se referindo ao Átila, e outras expressões similares como "ouvir a ciência". No caso, o entrevistado era um office-boy do Partido Comunista Chinês na defesa de um estado de sítio disfarçado de controle de pandemia, e o seu público mais entusiasmado era uma legião de esquerdistas semianalfabetos que precisavam de uma fachada técnica para a mágoa vingativa contra Jair Bolsonaro e Donald Trump.
[2] https://santhatela.com.br/leonardo-da-vinci/da-vinci-a-ultima-ceia
[3] https://santhatela.com.br/giampietrino/giampetrino-a-ultima-ceia
[4] https://santhatela.com.br/juan-juanes/juanes-santa-ceia
[5] https://santhatela.com.br/giacomo-raffaelli/rafaelli-a-ultima-ceia
[6] https://santhatela.com.br/francesco-santacroce/santacroce-ultima-ceia
Texto original em português sem fotos e vídeos de putaria no A Vez das Mulheres de Verdade: "Notas sobre poder de descrição (e um pouco sobre humorismo e os quadros da Santa Ceia)", https://avezdasmulheres.blogspot.com/2022/01/notas-sobre-poder-de-descricao.html. Texto original em português com fotos e vídeos de putaria no A Vez dos Homens que Prestam: "Notas sobre poder de descrição (e um pouco sobre humorismo e os quadros da Santa Ceia)", https://avezdoshomens.blogspot.com/2022/01/notas-sobre-poder-de-descricao.html.
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