O horror do escândalo é que ele revela o que até então era considerado normal. E o problema do escândalo fingido é que ele pretende esconder algo horrível de verdade, e quando mais desproporcional é o escândalo, mais sórdido, insano ou estúpido é o escandalizado. Em todos esses casos, o problema está sempre no que é normal. Se um escândalo verdadeiro faz a sociedade ou o grupo de pessoas onde ele ocorreu agir e se vigiar para que aquilo nunca mais se repita, foi a normalidade que mudou para melhor. Se uma picuinha provoca uma indignação generalizada, e pior ainda quando isso se repete, a normalidade está impregnada de idiotice, censura mútua e falta de autocrítica, além de ter coisas escabrosas de verdade que não são pensadas ou que são escondidas, que talvez uma pessoa típica do grupo social não diz nem para si mesma.
A esquerda sabe disso desde o começo. Não é por acaso que o Manifesto Comunista termine chamando os proletários de todo o mundo para se unirem no ideal comunista, ou que um dos clássicos da esquerda do Brasil seja uma "Pedagogia do Oprimido", de Paulo Freire. Tanto os socialistas bem intencionados quanto os mal intencionados sabem que a sociedade precisa ser mudada por dentro e pela base: os bem intencionados sabem que não se faz o paraíso proletário com um povo que ama a estultice e a iniquidade, os mal intencionados sabem que não se faz o inferno na Terra com um povo que tenha um mínimo de integridade mental e humanidade.
A fonte de validação de qualquer ideia ou prática é o mundo real ou, no mínimo, a Lógica. A própria autoridade de um escritor, de um cientista ou de um pensador é consequência do quanto o que ele diz pode ser observado ou aplicado no mundo físico, mesmo para ideias abstratas. Nós podemos dizer que um sistema de ideias é ruim analisando que ele vai ser ruim se praticado ou que ele não se sustenta nem em teoria. Mas dizemos com certeza que ele é ruim se é um desastre quando praticado.
Quem tem renome e reconhece com honrarias alguém que é notoriamente idiota, vigarista ou mitômano não transfere da sua grandeza para esse alguém, mas perde um pouco da sua própria. Se uma sociedade inteira, através dos seus meios de comunicação, das suas artes e entretenimentos, do seu meio religioso e do seu meio científico, substitui pessoas qualificadas e pessoas íntegras por farsantes, essa sociedade como um todo, fora aquelas pessoas de valor, está em guerra contra a grandeza. O que não faz essa sociedade vencer, mas perder horrorosamente para a realidade.
E a medida do nível intelectual do povo é a capacidade do cidadão médio de apreender o cotidiano. Se uma pessoa, seja uma pessoa comum, seja um acadêmico, seja um "formador de opinião", consegue tratar como verdade algo que se choca com o dia-a-dia, a mente dessa pessoa está imune à verdade. Tudo que essa pessoa pensa e parece raciocínio ou estudo é um teatro de preconceitos e deficiências de interpretação. Tudo que essa pessoa pensa e parece experiência de vida é um empirismo mal aproveitado mais prática de burrice. Nós podemos ver a incapacidade de alguém de apreender o cotidiano quando a pessoa se embaraça (ou se irrita) com um exemplo desse cotidiano ou com um dado que esse cotidiano sugere.
Eu era só uma garota do povo com 15 anos quando eu comecei a compartilhar alguns pensamentos nos blogues A Vez das Mulheres de Verdade e A Vez dos Homens que Prestam. Ou melhor, eu pensei em compartilhar só um pouco de normalidade moral-mental. Eu me dediquei mais a criticar a religião, a instituição da família e o universo feminino, mas tudo isso como parte da crítica aos erros da normalidade. Já existiam ativistas de esquerda que se diziam ateus que criticavam o Cristianismo. Não digo que as minhas críticas eram repetitivas, mas algumas das que eu poderia fazer já tinham sido feitas. O mesmo para a instituição da família. Mas o que deu marca para o meu trabalho foi a crítica ao universo feminino por uma mulher. Homem tinha medo (ou um bloqueio mental) para criticar mulher. E mulher não criticava mulher, a não ser mulheres conservadoras criticando mulheres militantes de esquerda e vice-versa, ou mulheres casadas feias vindas do interior criticando mulheres bonitas da cidade grande.
Eu não escolhi defender o ateísmo e a licenciosidade só para parecer rebelde e polêmica. Eu sou ateia e prego o ateísmo porque a inexistência de Deus é uma observação da realidade. Eu sou licenciosa e prego a putaria responsável porque a sexualidade (hétero) faz parte da vida humana decente. A existência de Deus não tinha, para mim, nenhum argumento razoável a favor, a castidade também não tinha. Mas nenhum argumento meu, em qualquer texto que eu já escrevi, pressupõe a inexistência de deuses ou a defesa da promiscuidade para ser válido. E já vi muitos argumentos que começaram bem e caíram quando invocaram Deus, o Catolicismo Romano ou a castidade.
Eu sempre tive consciência de que eu estava em um país democrático e razoavelmente desenvolvido, e em uma época em que eu tanto tinha meios quanto podia escrever o conteúdo que eu escrevi. A esquerda juvenil teve o hábito de usar o desenvolvimento da sociedade ocidental contra o povo de verdade e a democracia contra ela mesma. Eu tentei usar esse desenvolvimento para melhorar o que estava errado através do que já estava bom. Então, as minhas críticas mais duras não viam a Idade Média no século XXI, nem muçulmanos executando gays em igrejas evangélicas do Brasil, nem a censura do socialismo chinês na democracia do Brasil. E mais do que isso: eu sabia que se eu tinha recursos para apresentar as minhas ideias, muitas pessoas comuns tinham.
Há um ano ou dois, eu tenho relido os meus textos e vi que eu confirmei coisas que eu tinha escrito. Não eram previsões, eram descobertas tardias, às vezes uma reportagem da grande imprensa de anos antes. Às vezes, eram só observações informais. Mas já disse Nelson Rodrigues, e ele morreu em 1980, que "só os profetas enxergam o óbvio".
Por exemplo, eu disse em "O machismo foi criado pelas mulheres - parte 1: como o machismo começou", novembro de 2010:
Está certo que eu não tirei isso de nenhuma pesquisa arqueológica, mas você vai concordar que pelo menos faz sentido. E se eu estiver certa, não tem como provar.
A parte 10 da série, de janeiro de 2016, já foi a tradução de uma reportagem de novembro de 2013 sobre uma pesquisa que mostra que as mulheres são mais agressivas com mulheres que elas achem mais atraentes e sexualmente liberais. Naquele novembro de 2013, a série estava na parte 8, sendo que a parte 4 era sobre "por que uma sociedade machista discrimina a prostituição e a pornografia".
Outro exemplo, em agosto de 2010, eu mostrei duas matérias sobre censura política na China a pretexto de censurar pornografia no texto "Essa é pra cambada de idiotas moralistas verem pra que serve filtro de internet". Naquela época, algumas páginas cristãs diziam que o Orkut, o Facebook e o StumbleUpon eram antros de adúlteros, pedófilos e pornografia. Em 2013, Gustavo Nogy publicou no Facebook uma foto da Marcha das Vadias onde uma mulher nua enfia uma imagem de Nossa Senhora na bunda e ELE teve a conta encerrada; a Marcha das Vadias tem várias páginas no Facebook até hoje. Em 2017, uma página liberal conservadora foi denunciar pedofilia em uma exposição do Museu de Arte Moderna de São Paulo e a foto deles é que quase foi censurada.
Outro exemplo, em janeiro de 2007, eu escrevi o texto "Meninas, vamos parar de brigar com os homens?" só porque eu via algumas piadas de mulheres depreciando os homens, aquelas piadas que seriam machistas ou misóginas se fossem de gêneros trocados. Eu ainda ia fazer 16 anos. Eu nem imaginava que feministas já haviam proposto extermínio de homens uns 40 anos antes.
Eu não costumo me arriscar a fazer previsões, mas eu nunca escrevi algo que eu visse hoje que estava substancialmente errado. Ou melhor, os meus grandes erros foram quando me faltou a percepção ou a imaginação de que aquilo sobre o que eu escrevia era ainda pior. Eu comecei o meu trabalho com a ideia de que eu teria de ajudar a formar e juntar pessoas inteligentes de bom caráter. Eu comecei o meu trabalho com a ideia de que sem a disseminação do raciocínio normal e sem a execração da estupidez, da vaidade e do mau caráter na vida nacional, a universidade, o meio técnico-científico, as artes e entretenimentos, a política, o serviço público, o meio empresarial, a religião serão, acima de qualquer outra coisa, palcos de vaidades, e só conseguiremos fazer uma porcaria dos infernos com o pouco que conseguirmos criar, descobrir ou perceber. Nisso, eu tinha razão.
Texto original em português sem vídeo e fotos de putaria no A Vez das Mulheres de Verdade: "Abigail tinha razão", https://avezdasmulheres.blogspot.com/2017/12/abigail-tinha-razao.html. Texto original em português com vídeo e fotos de putaria no A Vez dos Homens que Prestam: "Abigail tinha razão", https://avezdoshomens.blogspot.com/2017/12/abigail-tinha-razao.html.
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