Abigail Pereira Aranha
Vou aproveitar o assunto do combate à dengue para abordar a questão da submissão do indivíduo a um Estado totalitário. Não é nada contra a campanha da dengue.
Pouco antes da epidemia de dengue, houve uma demissão de 5500 agentes de saúde. A crise foi fabricada para apresentar a uma população assustada uma solução que não seria tolerada em outra situação. Já temos casas arrombadas com amparo judicial para eliminar focos do Aedes aegypti. E nós mesmos já recebemos a visita de um agente de saúde (do Estado) em nosso domicílio. Mesmo que a ação do Estado seja justificável no aspecto da saúde pública, convém não nos acostumarmos. Nos acostumarmos a um Estado que alerta que é calamidade hoje o que era sensacionalismo ontem e diz o que fazer ou não em uma comunidade sem iniciativa própria, desagregada e desinformada.
Já podemos denunciar bandidos foragidos no Disque Denúncia (também nada contra). Podemos denunciar usuários de salas de informática que não façam "bom uso" dos computadores. Os cristãos já podem denunciar não só comunidades do Orkut envolvidas com pedofilia, também as que contrariem a sua visão da sexualidade como pecaminosa e indesejável, também as que contrariem seu lema de que o Cristianismo é a verdade absoluta e o cristão é a encarnação da virtude e da ética.
A privacidade, o anonimato e (o que está fora do assunto aqui) a liberdade de expressão, que são as últimas proteções de pessoas sem intenção de prejudicar quem quer que seja contra governos arbitrários e civis de mente limitada, são mostrados como ameaças. São mostrados como esconderijos de malfeitores e pessoas indisciplinadas para atos que prejudicam ou ameaçam a nação, que nessa hora deixa de ser uma entidade fantasmagórica com uma curiosa existência autônoma para incluir as pessoas que vivem no território dela. Já vimos no jornal quebras de sigilo telefônico ou bancário revelarem planos de terríveis criminosos, outros terríveis malfeitores presos com a ajuda de imagens de câmeras de vigilância e terríveis criminosos presos após uma revista da polícia movida por uma "atitude suspeita". O sucesso brasileiro e mundial do Big Brother e de programas similares (que são, na melhor avaliação, vazios de conteúdo) é um sinal aterrorizante.
E quem vigia o quintal do vizinho contra o mosquito da dengue pode achar uma garota de 16 anos com o vizinho no quintal, oferecendo serviços e diversões que a mulher vigilante não oferece nem pro marido. Dizem que a minha aula particular é divertida pras duas cabeças.
O bisbilhoteiro da vida alheia e a pessoa de má índole, quando atiram um desafeto pessoal ou alguém do grupo alvo de seus preconceitos particulares (culpado ou inocente) no calor da "caça às bruxas" da ocasião, já deixaram de ser as pessoas desprezíveis que são para serem cidadãos honrados envolvidos na solução de uma calamidade nacional. Foi assim na luta contra o comunismo no Brasil da ditadura militar e é assim na luta contra os "terroristas" nos Estados Unidos pós-11 de Setembro, para citar dois exemplos.
E por falar em caça às bruxas, o católico romano da Inquisição tinha o peso da responsabilidade de denunciar, com ou sem provas, qualquer suspeito de heresia, em especial os de sua própria casa. Se conhecesse um suspeito e não o denunciasse, pagaria multa ou seria expulso do país. Aquela época era de um mundo assombrado: pessoas com epilepsia, com problemas psiquiátricos, com deformidades físicas ou mesmo canhotas estavam possuídas ou afligidas por demônios, se não aliadas com eles. E o abrigo para esse mundo assombrado por demônios era a Igreja. Hoje, o Estado pode ser o abrigo para o cidadão que pode ser atacado por um criminoso em qualquer praça, contrair uma doença venérea na primeira transa fora de seu relacionamento estável, ficar sem energia elétrica se não pagar uma conta mais alta e gastar menos, perder um filho arrastado preso ao próprio carro levado em um assalto ou morrer por uma picada de mosquito. Os nossos colegas de serviço ou escola são nossos concorrentes, metade dos indivíduos do nosso sexo querem nosso(a) namorado(a), os rapazes querem se aproveitar das nossas filhas adolescentes e o nosso vizinho, além de invejar o que temos, pode estar criando mosquitos no quintal.
"Big Brother zeals for you" (O Grande Irmão zela por ti) - "1984". Novamente, nada contra a campanha contra a dengue.
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